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A processualização do cotidiano em Cart Life

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Não há palavra que me desperte mais fascinação que o neologismo sonder.

A experiência que ela descreve é tão específica, seu significado tão universal, que me surpreende que outros povos não tenham cunhado termos correspondentes em seus próprios idiomas, filósofos não tenham buscado uma alcunha para o assombroso sentimento que ela evoca, e que livros religiosos não tragam em suas páginas capítulos inteiros dedicados à explorar e compreender o gozo e pavor que nos preenche ao mergulharmos no abismo representado por essa modesta palavra dissílaba.

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Portrait of Red-Haired Girl and Clown. Reprodução – Richard Hofmeier 2012

A despeito de sua pequeneza, sonder é o habitat de um sentimento tão grande quanto a própria vida, que surge num estalido de consciência onde conseguimos ver a nós mesmos nas pessoas ao nosso redor. Parafraseando o criador da expressão¹, Sonder é a compreensão de que cada transeunte aleatório é um ser humano tão vívido e complexo quanto você mesmo, uma épica estória que pulsa invisível ao seu redor – povoada por suas próprias ambições, amigos, rotinas, preocupações e loucuras –, com elaborados caminhos para milhares de outras vidas que você nunca imaginou que existisse e nas quais você aparecerá no máximo uma vez, como um anônimo a tomar café numa lanchonete; como mais um borrão de luz numa movimentada avenida; como uma janela iluminada em meio ao crepúsculo de uma cidade adormecida.

Sonder é o mais transcendental dos estados da empatia, senti-lo é abdicar de seu egocentrismo, experimentar a maior das humildades e aceitar a mais escorregadiça das verdades. Como qualquer outra relação empática, sonder só floresce ao reconhecermos nos outros seus esforços, aceitarmos seus defeitos e abraçarmos o fato de estarmos todos na mesma condição, lutando para fazer sentido de uma vida demasiadamente caótica, inadmissivelmente imprecisa e gritantemente breve.

Se, em linguagem coloquial, empatia é termos a sensibilidade para colocarmo-nos no lugar do outro, sonder consistiria em coletivizar esse conceito e colocarmo-nos no lugar de todos os outros, mesmo que por um breve momento.

À direita, o Sol

Cada mídia de expressão possui sua especialidade; um ou mais temas que ela é capaz de explorar de maneira mais natural que suas concorrentes.

A facilidade inata da literatura em lidar com abstrações transforma-a no meio de transmissão preferido por quem anseia contar histórias que explorem processos cognitivos, longas introspecções e detalhamento da percepção dos sujeitos em relação ao mundo ao seu redor. Fotografia, por ser consumida e compreendida em sua totalidade de uma só vez, possui grande poder evocativo e descritivo. Cinema, ao situar o espectador numa posição de terceira pessoa, exibe com graça problemas espacialmente localizados e interações sociais.

A natureza processual dos vídeo games, por outro lado, torna-o a melhor opção quando o objetivo é dar à audiência maior compreensão sobre sistemas e regras, indo além do caráter meramente observatório e contemplativo oferecido por outras mídias e permitindo interagir e experimentar ativamente tais sistemas. Retórica processual é a prática de utilizar processos de forma persuasivaNo livro Persuasive Games² (2007), Ian Bogost cunha o termo retórica processual e o define como “a prática de utilizar processos de forma persuasiva com o objetivo de apoiar, demonstrar ou criticar um modelo estrutural”. Ainda de acordo com Bogost, essa faculdade da retórica garante um “novo e promissor modo de demonstrar como as coisas funcionam”. Em vídeo games, a retórica processual é alcançada quando o desenvolvedor implementa em seu jogo mecânicas que funcionam com fim de metáfora, simulando o funcionamento de um sistema – ou unidade operacional – e convidando o jogador a manipular suas variáveis de forma a compreender seu funcionamento.

Municiado com tal conhecimento e decidido a criar uma obra que utilize de forma persuasiva o potencial imersivo e demonstrativo dos jogos eletrônicos, o ilustrador norte-americano Richard Hofmeier sistematizou em Cart Life a vida de três anônimos e improváveis heróis, permitindo que tenhamos um vislumbre de suas vidas, entendamos suas motivações e criemos um laço empático com aqueles que subsistem em condições semelhantes em nossas comunidades.

À esquerda, a Lua

Numa de suas mais célebres frases, o filósofo canadense Peter Hallward explica como que, na sua opinião, a vivência é a única forma verdadeiramente fidedigna de se experimentar um acontecimento. Usando a relação de afeto entre dois amantes como exemplo, Hallward argumenta que “uma terceira pessoa observando um casal de namorados pode se sentir encantado ou irritado, mas é improvável que compartilhe da experiência de amor que os une”, e esse ponto de vista é compartilhado por Hofmeier que, em entrevista ao site Nightmare Mode³, confessou que a decisão que o motivou utilizar vídeo games para contar sua história – ao invés de um filme ou livro – foi a capacidade única dessa mídia de dar à sua audiência o poder de “viver a vida de alguém completamente alienígena a você, e ainda assim sentir uma resposta emocional para seus problemas mundanos; sua vida tediosa; suas condições de vida nada atraentes. Sua transcendência por todas essas coisas, sua perseverança”. Isso posto, talvez seja seguro afirmar que Cart Life é um dos mais bem sucedidos exemplos de jogos que utilizam mecânicas retoricamente implementadas com o exclusivo objetivo de persuadir sua audiência, levando-os a compreender intrincadas relações de causalidade que assombram a rotina de três vendedores ambulantes da cidade fictícia de Georgetown.

Em Cart Life, nem mesmo a tela de menu escapa da poluição visual e cacofonia da vida urbana. Numa fração de segundos, dia vira noite, noite vira dia, enquanto o trabalhador mantém-se enclausurado numa bolha atemporal, perdido na rotina e mesmice de seus a fazeres diários. Como numa imagem lenticular, rostos humanos transmutam-se em meros vultos ao som de uma trilha sonora suja e frenética, que ajudada pelos epilépticos letreiros criam uma ópera harmônica com a desordem comum à cidade grande. Lar, doce lar.

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Cart Life é um simulador de varejo. Ou ao menos é isso o que as linhas escritas por Hofmeier na tela de título da obra nos levam a acreditar. A realidade, como sempre acontece, revela-se muito mais complexa assim que nos é dada a opção de escolher qual dos vendedores desejamos encarnar. Numa obra que se restringisse a apenas simular a economia de um pequeno estabelecimento comercial, não seria necessário informar ao jogador que Melanie Emberly é uma mulher recém divorciada, que precisa mostrar à corte que tem condições de se sustentar financeiramente para – assim – receber o direito à guarda compartilhada de sua filha infante. Tampouco seria relevante dividir conosco o drama de Vinny, um recém chegado à vida adulta que quer provar pra si mesmo que possui a capacidade de se estabelecer sozinho e construir seu próprio negócio. Muito menos confiar a nós a história do solitário imigrante Andrus Poder que, com seu inglês inseguro e acompanhado apenas por seu gato, vê na banca de jornais a única oportunidade de conseguir dinheiro para pagar sua comida, teto e recomeçar sua vida.

Como que numa sinédoque de nossas próprias vidas, Cart Life constrói o argumento de que o trabalho não é um fator determinante na vida dessas pessoas, e sim uma ferramenta cuja finalidade é abrir caminho para a conquista das mais intimas realizações pessoais, sejam elas a companhia de um ente querido, senso de responsabilidade ou a mera sobrevivência. Ao contrário de simuladores como Roller Coaster Tycoon e Game Dev Story onde todas as pessoalidades são postas de lado para que a única preocupação do jogador seja com o gerenciamento do fluxo de caixa, em Cart Life trabalho é visto apenas como um meio, não o fim. Mas essa abordagem tão dissimilar quando comparada com outros jogos torna-o ainda mais verossímil quando comparado com nossas rotinas. Os simuladores supracitados assumem que o ambiente de trabalho é localizado em uma realidade suspensa, onde funcionários deixam suas preocupações e problemas pessoais em casa e dão o máximo de si durante as horas em que estão executando seu ofício, porém não é necessária muita investigação para concluir que esse tipo de aproximação é simplória e não corresponde com o que de fato acontece.

cl3Na tentativa de endereçar esse problema, Cart Life torna a linha entre a vida pessoal e profissional indistinguível. Uma noite mal dormida resultará em sonolência durante o expediente, enquanto um dia pouco produtivo causará pesadelos e preocupações enquanto em casa. Ir para a cama muito tarde fará seu personagem se recusar a sair dela ao amanhecer, e apesar de as opções “Olhar a hora” e “Levantar” estarem presentes, o mouse brigará para ficar repousado sobre o botão “Continuar dormindo”, ilustrando a quase irresistível sedução personificada em mais duas ou três horas de sono. cl4

Embora o jogo evidencie a vida pessoal de seus protagonistas, o trabalho não é negligenciado. A maior parte do dia passamos nele, dobrando jornais, preparando cafés, recepcionando clientes. Cart Life não retrata o ato de trabalhar de maneira eufemística em nome da diversão, a jornada de trabalho é composta por oito – às vezes doze – horas de repetição da ingrata tarefa de dar boas-vindas ao freguês, anotar seu pedido, preparar o produto, calcular e entregar o troco. Não é raro faltar tempo para almoçar ou até mesmo dar um trago num cigarro, trabalhar exige dos personagens – e de nós, consequentemente – toda a atenção, paciência e energia disponíveis.

De forma a preparar sua banca de jornais para a rotina do dia, Andrus precisa cortar o laço que prende os jornais, dobrá-los e coloca-los nas prateleiras; esse processo é ilustrado em um minigame onde digitamos as ações que ele precisa realizar, simulando seu processo cognitivo. Nossa falta de atenção ao digitar as instruções faz com que seus jornais rasguem-se e caiam no chão, ficando inutilizáveis e deixando o jornaleiro no prejuízo. Mas como qualquer atividade motora, com a prática tornamo-nos cada vez mais rápidos e precisos em realizar o trabalho, dando a Andrus menos prejuízo e aproveitando o tempo de forma eficaz.

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Tempo, aliás, é a mais importante – e irrecuperável – variável no jogo. Dormir, comer, trabalhar, comprar ingredientes, buscar sua filha na escola, conseguir permissões na prefeitura, tudo isso consome uma considerável parcela das horas do dia dessas pessoas, portanto utilizar o tempo disponível de forma eficiente pode representar a diferença entre se alimentar naquele dia ou dormir por poucas horas e faminto. Além disso, Hofmeier adapta para um modelo processual o conceito artístico de espaço negativo: Enquanto a maior parte de nosso foco é direcionado à realizar tarefas desgastantes e trabalhos cansativos, o maior prazer do jogo está nos momentos de hiato entre uma atividade e outra, naquele singular e efêmero instante onde podemos fumar um cigarro, conversar com nosso gato e apreciar uma boa refeição, mesmo sabendo que no dia seguinte a máquina começará seus trabalhos novamente.

À frente, as estrelas

Cart Life constrói através de suas mecânicas argumentos sobre as dificuldades e responsabilidades que afligem a vida de todos nós, enquanto finge ser um simulador de varejo e persuade o jogador a tentar compreender as batalhas diárias vividas por anônimos tão ilustres quanto eu e você, que tentam ganhar a vida um dia de cada vez.

Na correria cotidiana, não identificamos no rosto cansado da recepcionista do banco seus problemas matrimoniais e a dificuldade de se relacionar com seus filhos; o boné usado pelo vendedor de picolé que trabalha diariamente na praça próxima ao seu prédio esconde os olhos tristes de alguém que está enfrentando com coragem uma doença; a velhinha que vende maçãs do amor ao fim da tarde não deixa transparecer em seu sorriso a vontade de largar tudo e ir viver no interior. Trabalhos como esses possuem o potencial de sugar nossas vidas através das repetições, falta de gratidão e reconhecimento. No ambiente estressante de quem precisa acordar de madrugada, ouvir reclamações o dia todo e não ter certeza se terá dinheiro o suficiente para pagar o aluguel, o ponto alto do dia é o momento de trancar a porta de aço e partir para o ponto de ônibus, torcendo para que haja lugar pra sentar. O tempo nunca é suficiente, o dinheiro nunca é suficiente, a única coisa que transborda é a esperança de que o dia seguinte será melhor que o anterior.

Às vezes, por estarmos perdidos em cálculos, embriagados de tédio ou sufocados por preocupações, nos sentimos tentados a reduzir complexos seres humanos a ineficazes prestadores de serviço, irritantes vendedores, inócuos panos de fundo. Mas é nesses momentos que Cart Life emerge e mostra-nos que todas essas pessoas são tão vívidas e vivas quanto você, preenchendo com sonder o que antes era povoado pela apatia.

Cart Life é gratuito*, e pode ser baixado em seu site oficial.×
*A licença gratuita permite ao jogador ter acesso ao game completo, sendo sua unica limitação a ausência do personagem jogável Vinny.

Apêndice
Richard Hofmeier. Cart Life. Maio 2011.
¹ Dictionary of Obscure Sorrows. Sonder. Como visto em 24 de Fevereiro de 2013.
² Bogost, Ian (2007). Persuasive Games. (p.64)
³ Holmes, Dylan. The Artist: A Conversation with Cart Life’s Richard Hofmeier. Como visto em 26 de Fevereiro de 2013.


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